O ministro Dias Toffoli, do STF, um dos mais esmerados em destruir a principal operação de combate à corrupção no Brasil, não deveria estar julgando e perdoando as multas das grandes empreiteiras que confessaram crimes, apresentaram provas de seus erros e se comprometeram a pagar vultosas quantias a título de compensação ao povo brasileiro. O ministro deveria se julgar impedido, no caso em que sua esposa advoga para a empresa e alegar suspeição no caso da Odebrecht, pois seu nome estava no rol dos beneficiados por propina.
Só não há impedimento legal porque o STF, numa decisão de cunho corporativo e para não atrofiar o próspero mercado de operadores parentes de juízes, deu um drible no CPC (inciso VIII, artigo 144). Impede o juiz de atuar num processo em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de cônjuge, companheiro ou parente, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório. E parece o presente caso. A advogada Roberta Rangel é contratada da J&F, que teve uma multa bilionária anulada pelo marido ministro.
O voto majoritário do STF entendeu a argumentação da Associação dos Magistrados que demandava pela derrubada do impedimento. Segundo eles, não teria como o magistrado ter conhecimento de todos os seus parentes que poderiam estar em alguma causa julgada por eles. Até que faria sentido, se não houvesse sistemas de informática de fazer esse cruzamento. Mesmo assim, o ministro Toffoli não poderia alegar desconhecer o que faz sua mulher fora de casa. Se não legal, havia um imperativo moral para que o ministro se escusasse de promover a lambança.
No mérito da sentença, além do aspecto moral, há também uma questão de direito. Provas obtidas de forma ilegal costumam não ter validade jurídica, conforme a famosa Teoria do Fruto da Árvore Envenenada. Jamais uma prova dessa natureza poderia ter consequência jurídica, muito menos dessa magnitude, em que o Estado brasileiro é obrigado a abrir mão de R$ 10,3 bilhões. As provas ilícitas, que não deveriam servir para nada, estão servindo para tudo, numa clara subversão do nosso sistema de justiça.
A J&F foi envolvida em rumorosos escândalos de corrupção, tendo confessado que subornou quase toda a República, desde dois presidentes, governadores, ministros e parlamentares. É o mundo todo, bebê. Confessou os crimes, apresentou as provas das ilicitudes, e agora diz que se viu forçada. Foi forçada a corromper ou a confessar a corrupção? A corporação já conhecia os meandros do poder e os personagens que voltaram à cena. Por isso, já tinha na sua folha de pagamento, como parecerista, o ministro do STF Lewandowsky. Com seu auxílio luxuoso, conseguiu a concessão para comprar energia da Venezuela, decuplicando os preços até então praticados na comercialização com o Brasil.
Com a porteira bilionária escancarada, logo a Odebrecht, que mudou de nome, entrou na fila, para alegar que foi coagida a confessar os crimes, apresentar as provas e concordar com o pagamento da multa de R$ 3,8 bilhões. Pois não, disse Toffoli, deixa comigo, num gesto que deverá se repetir em mais uma dezena de empresas, que participaram do saque aos cofres públicos durante os governos petistas. Toffoli, sem que a investigaçao prosseguisse, era um dos nomes da famosa lista de propinas da Odebrecht. Por não se julgar suspeito, suspeita-se que o juiz pode estar pagando a conta.
Fala-se muito de Alexandre de Moraes, que se tornou o verdugo da democracia ao tempo em que se apresenta como seu defensor. Mas a outra ponta dessa balança descompensada está a figura de Toffoli. Presidia ele o Supremo Tribunal Federal durante o vendaval provocado pelas investigações da Lava Jato. O Executivo estava no meio do furacão, muitos parlamentares também no redemoinho. Não tardaria a chegar ao Judiciário. Logo depois da estratégia de “com o STF, com tudo”, manifestada pelos envolvidos, surgiu também a tal da lista e viemos a conhecer que “O amigo do amigo do meu pai” se tratava de Toffoli.
A partir daí, o STF veio com tudo. Imparável. Abriu um inquérito de ofício (adeus, princípio da inércia), escolheu o relator (adeus, juiz natural), usando o Regimento Interno para ações externas, sem a participação da PGR (adeus, sistema acusatório). Atropelaram tudo. O amigo do amigo do amigo do meu pai, atualizado para o marido da minha advogada, não estava para brincadeiras. O inquérito aberto por ele, considerado natimorto por Marco Aurélio, é o mais longevo da história. E só vai terminar quando acabar (adeus, razoabilidade de prazo).
Como as ações monocráticas têm o respaldo dos pares, na maioria, quando não na unanimidade, como se pode falar em moralidade? O certo é que, em condições, normais, o ministro Toffoli, por questões éticas, morais e até legais, deveria se escusar desses julgamentos, seja porque a mulher recebe honorários de quem é parte, seja porque ele mesmo esteve envolvido como possível investigado. Resta-nos esperar por Dias melhores.